Em um novo capítulo jurídico, Abrasel abriu esta semana mais um processo contra plataforma, que já empilha ações contra si, e denuncia práticas anticompetitivas no CADE
O iFood, maior plataforma de delivery da América Latina, está no centro de uma disputa, mais uma vez, que envolve poder econômico, inovação tecnológica e direito concorrencial. A empresa, que segundo pesquisa da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), possui atividades movimentaram 0,64% do PIB nacional em 2024 e geraram mais de 1 milhão de postos de trabalho diretos e indiretos — foi formalmente denunciada pela Associação Brasileira de Bares e Restaurantes (Abrasel) ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).
A representação protocolada pela Abrasel acusa o iFood de práticas anticompetitivas que estariam sufocando a livre concorrência e prejudicando tanto restaurantes quanto consumidores. Segundo a entidade, a plataforma deixou de ser apenas um intermediador de pedidos online para se tornar um “ecossistema digital fechado”, com atuação dominante em múltiplas frentes — pagamentos, logística, crédito e até atendimento presencial.
“O que estamos denunciando não é apenas uma disputa comercial sobre taxas; é uma luta pela sobrevivência e pela liberdade de escolha dos restaurantes brasileiros”, afirmou Paulo Solmucci, presidente da Abrasel. “O iFood construiu um verdadeiro império digital e agora usa seu poder para ditar todas as regras, desde como o restaurante recebe seu pagamento até qual entregador fará o serviço.”
Práticas denunciadas
A Abrasel destaca três frentes principais de atuação do iFood que, segundo a entidade, configuram abuso de posição dominante:
Venda casada no sistema de pagamentos: restaurantes são obrigados a usar a solução de subcredenciamento da própria plataforma, com taxas de até 3,5% — bem acima da média de mercado, que segundo o Banco Central é de 2,28% para transações de crédito.
Barreiras tecnológicas e domínio logístico: o uso da IA “Optimizer” direciona entregas a parceiros exclusivos, dificultando a entrada de novos concorrentes. APIs proprietárias também limitam a integração com outros sistemas, aumentando a dependência dos estabelecimentos.
Expansão para o atendimento físico: com o lançamento do “iFood Salão”, a empresa passa a coletar dados do atendimento presencial, ampliando seu controle sobre a operação dos restaurantes parceiros.
O poder econômico do iFood
A denúncia da Abrasel ganha ainda mais relevância diante dos números apresentados pela própria plataforma. Segundo a pesquisa da Fipe mencionada no início desta reportagem, o iFood movimentou R$140 bilhões em atividade econômica em 2024, com um efeito multiplicador que gera R$1.395 adicionais para cada R$1.000 gastos na plataforma. Em termos de arrecadação, a cada R$1.000 em impostos gerados diretamente, outros R$1.115 são gerados indiretamente na cadeia.
Debora Gershon, diretora de Data Policy e Economia do iFood, explica: “Ao analisar a aquisição de um hambúrguer via plataforma, por exemplo, observam-se efeitos diretos, indiretos e induzidos na economia. Operando como uma engrenagem, são quantificados os impactos em toda a cadeia produtiva: desde a produção agrícola dos insumos, a compra da carne e do pão para a produção do hambúrguer, o combustível consumido no transporte, as embalagens de papel na entrega e a remuneração dos colaboradores da hamburgueria.”
O impacto também se reflete na geração de empregos. Em 2024, o iFood ultrapassou a marca de 1 milhão de postos de trabalho diretos e indiretos — o equivalente a quase 1% da população ocupada do Brasil. Restaurantes parceiros da plataforma tiveram um crescimento real 2,3 vezes maior que a média do setor entre 2023 e 2024. O ingresso no iFood gerou um aumento médio de 6,9% no número de empregados, chegando a 10,2% entre pequenos estabelecimentos.
Segundo o CEO da empresa, Diego Barreto, “todo esse impacto positivo existe pois nós conectamos logística, crédito, dados e capacitação para fortalecer quem empreende, trabalha e consome, criando valor compartilhado em cada etapa da jornada”.
O que diz a Lei Brasileira da Concorrência
A Lei nº 12.529/2011, conhecida como Lei de Defesa da Concorrência, proíbe práticas como abuso de posição dominante, venda casada e imposição de barreiras à entrada de novos agentes no mercado. O CADE é o órgão responsável por investigar e julgar essas infrações, podendo aplicar multas de até 20% do faturamento bruto da empresa e exigir mudanças contratuais ou operacionais.
Casos anteriores mostram que o ambiente digital não está fora do alcance da legislação. Em 2021, o próprio iFood foi investigado por cláusulas de exclusividade com restaurantes, que limitavam a atuação de concorrentes como Rappi e Uber Eats. A Ambev também foi condenada por exigir exclusividade de bares e impedir a venda de bebidas concorrentes.
A nova denúncia da Abrasel reacende o debate sobre os limites da atuação de plataformas digitais e serve como alerta para outras empresas que operam ecossistemas integrados. O mercado segue atento aos desdobramentos jurídicos e à resposta do CADE, que poderá redefinir as regras do jogo no setor de alimentação fora do lar.
Exemplos de aplicação da Lei no Brasil
A legislação já foi acionada em outros casos conhecidos:
Alerta para o mercado digital
A ação da Abrasel serve como alerta para outras empresas que operam em ambientes digitais. O crescimento acelerado de plataformas e marketplaces exige atenção redobrada à legislação concorrencial. A criação de ecossistemas fechados, embora eficiente do ponto de vista operacional, pode gerar dependência excessiva e sufocar a inovação.
“O setor de alimentação fora do lar, que é plural e criativo, corre o risco de ser sufocado por um monopólio que drena a rentabilidade dos negócios e limita as opções do consumidor final”, reforça o presidente da associação.
Por isso a Abrasel solicitou ao CADE a instauração de um Processo Administrativo para “investigar e cessar as condutas, aplicando as sanções cabíveis”. O objetivo é “restaurar um ambiente de concorrência justo, onde os restaurantes possam escolher livremente seus fornecedores de serviços financeiros e logísticos, e os consumidores se beneficiem de um mercado mais dinâmico e inovador”, informou a associação em comunicado.
E para saber mais detalhes sobre o assunto em busca de refletir sobre aspectos da concorrência no Brasil, a GZM conversou com dois especialistas no assunto, Ricardo Inglez de Souza, sócio do IW Melcheds Advogado, mestre em Direito Econômico pela PUC/SP, especialista em Comércio Internacional e Direito Econômico, professor de Direito na FAAP/SP e presidente da Comissão Especial de Direito da Concorrência e Regulação Econômica da OAB/SP, e Marcelo Godke, sócio do Godke Advogados e especialista em Direito Empresarial e Societário. Professor da Faculdade Belavista, mestre em Direito pela Columbia University School of Law. Doutor em Direito pela USP (Brasil) e Doutorando pela Universiteit Tilburg (Holanda). Confira:
GZM: A obrigatoriedade de uso de serviços próprios de pagamento pode ser considerada venda casada sob a ótica da legislação antitruste brasileira?
Ricardo Inglez de Souza: Sempre que um fornecedor condiciona a compra de um produto ou serviço à aquisição de outro produto ou serviço, há risco de caracterizar venda casada. Caso o iFood limite o acesso à plataforma condicionando o ingresso/manutenção de players ao uso de seus próprios serviços de pagamentos, a depender do modelo adotado pela plataforma, corre esse risco. O problema, nesse caso, nem é apenas concorrencial, também as autoridades de proteção do consumidor podem ser acionadas. As penalidades podem ser bem elevadas, além de uma obrigação de parar com essa prática.
Marcelo Godke: Sim, pode ser caracterizada como venda casada. Pela Lei nº 12.529/2011 (Lei de Defesa da Concorrência), a prática de condicionar a compra de um produto ou serviço à aquisição de outro pode configurar infração à ordem econômica, sobretudo quando realizada por empresa com posição dominante.
No caso em análise, se a plataforma de delivery exige que os restaurantes utilizem exclusivamente sua solução de pagamentos como condição para permanecerem no ecossistema, temos um típico exemplo de tying, ou venda casada. Isso restringe a liberdade do restaurante de escolher prestadores alternativos, aumenta seus custos e, por consequência, reduz a concorrência no mercado de meios de pagamento.
O CADE já analisou casos semelhantes em setores como telecomunicações e meios de pagamento, e costuma ser rigoroso quando a conduta limita a entrada de concorrentes e transfere custos desproporcionais ao consumidor final.
GZM: Quais são os critérios que o CADE utiliza para caracterizar abuso de posição dominante em plataformas digitais?
Ricardo Inglez de Souza: De forma simplificada, o CADE avalia a combinação de poder de mercado, práticas restritivas e efeitos sobre concorrentes e consumidores para caracterizar um caso de abuso de posição dominante. Esse processo também ocorre com as plataformas digitais.
No Brasil, presume-se que a empresa tem posição dominante quando detém 20% ou mais do mercado relevante. O iFood tem participação de mercado superior a esse patamar.
Caso o iFood esteja limitando acesso a tecnologias proprietárias (APIs fechados ou integração limitada), imposição de serviços próprios, ou preferência a parceiros exclusivos via algoritmos ou inteligência artificial, o CADE e as autoridades de proteção do consumidor deverão avaliar eventual configuração de abuso.
Marcelo Godke: O CADE observa alguns elementos centrais:
Participação de mercado significativa: geralmente acima de 20%, mas em plataformas digitais o peso da rede de usuários (efeitos de rede) e o grau de dependência podem ser mais relevantes que o número bruto.
Existência de barreiras à entrada: como tecnologias proprietárias, custos de integração e dependência de dados exclusivos.
Condutas de exclusão ou discriminação: por exemplo, restringir acesso de concorrentes a entregadores, ou dificultar integrações tecnológicas por meio de APIs fechadas.
Exploração abusiva: imposição de preços ou taxas acima da média de mercado, sem justificativa econômica proporcional.
Em plataformas digitais, o CADE também tem considerado fatores como uso de dados (para reforçar posição dominante), auto-preferência algorítmica e estratégias de expansão vertical (quando a plataforma utiliza seu poder em um mercado para dominar mercados adjacentes).
No caso do iFood, há uma combinação de todos esses elementos: concentração acima de 80% no delivery, barreiras de entrada significativas e imposição de condições comerciais restritivas.
GZM: A coleta de dados em ambientes físicos, como o “iFood Salão”, pode configurar violação à livre concorrência ou à privacidade dos consumidores e parceiros?
Ricardo Inglez de Souza: A coleta de dados, por si só, não é motivo para configuração de violação da livre concorrência. Contudo, a coleta massiva de dados pode fortalecer posição dominante e promover ou facilitar conduta abusiva pelo iFood.
Marcelo Godke: Potencialmente, sim e em proporções preocupantes nos dois âmbitos: concorrencial e de proteção de dados.
Concorrência desleal e assimetria informacional — Ao expandir sua vigilância para dentro do ambiente físico dos restaurantes parceiros, a plataforma transforma o que antes era apenas um ponto de venda em uma verdadeira mina de dados comportamentais. Informações como fluxo de clientes, tempo médio de permanência, hábitos de consumo e até preferências alimentares se tornam insumos valiosos que alimentam algoritmos, estratégias de precificação e decisões de negócio da própria plataforma.
A questão é: esse uso de dados é equitativo ou se traduz em autoalimentação predatória? A depender do cenário, configura vantagem competitiva desproporcional e assimétrica, um claro desvio de finalidade da relação com os parceiros comerciais. Pequenos restaurantes, por exemplo, jamais terão acesso ao mesmo nível de inteligência de mercado. Isso distorce o jogo competitivo e pode atrair a atenção de autoridades antitruste.
Privacidade e desvio de finalidade — no campo da proteção de dados, o movimento acende alertas ainda mais sérios. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) é clara: dados pessoais devem ser coletados com base legal adequada, transparência e finalidade legítima. Se consumidores e funcionários não são claramente informados, de forma compreensível e destacada, sobre como seus dados serão coletados, usados e compartilhados dentro desse ecossistema físico-digital, há risco real de infração.
O uso de câmeras, sensores ou check-ins automatizados pode configurar tratamento invisível, o que fere princípios como finalidade, necessidade e transparência. E se os dados coletados em um contexto de atendimento presencial forem reutilizados para monitorar concorrentes, manipular preços ou direcionar estratégias promocionais, a discussão migra de proteção de dados para uso abusivo de poder de mercado.
Tendência global e atenção regulatória crescente— esse fenômeno, a chamada verticalização orientada por dados, já está sob escrutínio em jurisdições como União Europeia e Estados Unidos, especialmente no contexto das Big Techs. A coleta massiva de dados offline para alimentar estratégias digitais é um vetor crescente de preocupações concorrenciais e regulatórias. E o Brasil não está alheio: tanto o CADE quanto a ANPD já manifestaram interesse em investigar práticas de plataformas digitais com acúmulo excessivo de dados e potencial de fechamento de mercado.
Em síntese, o salão pode até ser do restaurante, mas os dados, se não forem protegidos, podem acabar servindo à lógica do monopólio.
Publicado na Gazeta Mercantil.
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